Por Josi Gonçalves*
Davi nasceu prematuro. Ficou nove
dias na UTI. Com 17 dias eu já o levei pra passear no shopping. Não queria
criar uma redoma em volta dele e nem um conceito de pobrezinho, coitadinho,
frágil demais. Os meses passaram voando. Quando dei por mim, meu bebê, que tinha saído
do hospital com 2,4 kg, já estava pesando oito quilos aos seis meses.
Crescia forte, saudável, rosado.
O que me incomodava era a demora pra andar, falar. Me queixei ao pediatra que o
atendia desde o primeiro mês. Cada criança tem seu ritmo, mãe, dizia ele. E não
é que ele tinha razão? Meu pequeno andou com um ano e três meses. Poucos meses
antes começou a balbuciar mamã e papá.
Quando vi, ele já tinha dois anos.
Ainda esperava ele falar mais articulado, mas ficava feliz em ver que o
danadinho tinha verdadeira adoração pelo alfabeto, em inglês e português, e o
conhecia de cabo a rabo. Achei tão bonitinho que, apesar dele ter babá, resolvi
matriculá-lo numa escola que ficava a uma quadra da minha casa.
A escola tinha câmeras de
segurança que permitia aos pais acessar as imagens das salas de aula pelo
celular. E eu acessava vez por outra pra matar a saudade, mas uma coisa me intrigava. Ele estava sempre isolado. Não se misturava às
outras crianças. Procurei as professoras. Me disseram que era excesso de
timidez e que com o tempo ele iria se adaptar.
Em casa era sociável. Mas não
chegava a ser receptivo às visitas. Fazia o tipo marrentinho. Inclusive na
própria festa de aniversário de dois anos, onde chorou o tempo inteiro na hora
de cantar os parabéns. Fora isso, era uma criança amorosa até, embora não
conseguisse conversar quase nada comigo.
Impossível não notar o quanto era
organizado. O oposto de mim! Saia fechando tudo que era porta aberta: de armário,
de guarda roupa, de cômoda.
Com dois anos e meio mudamos de
casa e de estado. Na nova cidade matriculei-o numa outra escola. Seu rendimento
era bom. Embora eu percebesse que ele não tinha muita habilidade para pintar,
contornar, desenhar. Fazia tudo isso com um desinteresse enorme.
Mas antes de ir pra escola já
tinha aprendido sozinho, por meio do tablet, o que era triângulo, retângulo,
quadrado, em português e inglês.
Durante um ano inteiro só fez um
amigo na escola e se recusou a participar de todas as apresentações da turma
naquelas tradicionais festas de páscoa, dia do índio e encerramento de ano
letivo. Resolvi insistir pra que ele se juntasse aos amigos e à professora e
subisse ao palco em uma destas comemorações. Ele deu um show. De choro e grito.
Por falar em birra, Davi não
suportava frustração. Qualquer frustração. Por mínima que fosse. - Água gelada?
Ele pedia. - Já te dou, deixa só eu terminar de dobrar esse lençol aqui. Isso era
suficiente pra que ele se jogasse ao chão em gritos estridentes que, penso, os
vizinhos iriam achar que ele estava sendo espancado.
Que gênio forte! Eu concluía
desolada que o moleque iria me dar trabalho. E conversava com meu marido como iríamos contornar e resolver aquilo.
No ano seguinte, 2016, na festa
de páscoa da escola tentei convencê-lo a se juntar à turminha dele. Tentativa que
fui obrigada a abortar. Ele reagiu mal e chorou bastante. Quando a festa
terminou procurei a professora. Perguntei: - Sinceramente, você acha que há
algo errado com o Davi? Ela deu um suspiro profundo e aliviado. Me disse que
fazia uns meses que vinha observando o comportamento dele e que a minha desconfiança
tinha sido oportuna.
Fiquei sabendo que ele só sentava
na mesma cadeira, que se ela estivesse torta não sentava e que enquanto a
professora não dissesse pra ocupar o lugar dele, permanecia em pé no
meio da sala. Também soube que tinha dificuldades de lidar com o fato dos
coleguinhas mudarem de assento e com a quebra de rotina. A docente ainda me
repassou outros detalhes e me disse: acho que seu filho tem Síndrome de
Asperger, distúrbio que está incluído dentro do Transtorno do Espectro Autista
(TEA).
Confesso que no primeiro momento
quis transparecer neutralidade e calma. Mas recebi a notícia como se recebesse
uma bomba. Chamei meu esposo, conversei com ele e fomos montar o quebra-cabeça
da vida do Davi desde que ele nascera. Quantas evidências e a gente dormindo de
touca! Depois do choque a primeira reação foi de culpa. Como não percebemos?
Quanto tempo perdemos sem tratamento!
Mas, para me redimir, a memória
me trouxe de volta as conversas com o médico: - Mãe, deixe de ser apressada, cada
criança tem seu tempo. E ele era um
ótimo médico! E as professoras da escola anterior? - Mãe, ele é tímido. Só isso.
Me perdoei.
Agora era tempo de correr atrás do
prejuízo. Oito meses depois da conversa
com a professora, ainda não consegui laudo público, apenas particular. E o
laudo da rede pública de saúde é fundamental para se obter os benefícios legais
a que a criança com autismo tem direito. Mesmo aqueles que tem autismo leve, como é o caso do Davi.
Percebi, mais do que nunca, o
quanto o sistema de saúde pública é falido e que eu tinha de ter um plano de
saúde urgente. Agora ele já faz terapia ocupacional, fonoaudiologia e tem sessões com a
psicóloga e consulta com a neuropsiquiatra.
Ainda precisa fazer um exame de
cariótipo, com pesquisa de X frágil, para investigar geneticamente as causas do
autismo e outras doenças associadas. Mas embora tenha plano de saúde, tenho que
pagar pelo exame para ser reembolsada depois.
Davi teve progressos. Já se
comunica melhor, está mais aberto ao diálogo, já interage com outras crianças,
embora quase não sorri enquanto brinca com elas, e vai aceitando aos poucos a
introdução de outros alimentos na dieta, que não sejam biscoitos de água e sal,
achocolatado e vitamina de banana.
Há pouco tempo passou a mastigar
os alimentos. Antes só os engolia. Mas ainda tem nojo quando alguém come perto
dele. Já se permite sujar as mãos com tinta guache, mas tem pavor de uma gota
de xixi que pingue no corpo quando vai ao banheiro.
Venho aprendendo, dia após dia, a
lidar com ele. Já contorno a maioria de suas “birras” e esses dias tive o
prazer de ser surpreendida por uma reação “tomou levou” dele. Ao se recusar a
ficar com os primos na piscina da casa do meu irmão, ouviu de uma prima adulta:
- Mas, Davi, você não quer tomar banho de piscina com seus amiguinhos? Vai
perder mesmo, é? Ele retrucou na lata: - Na minha casa tem banheiros. Assim, no
plural.
Outra pessoa talvez pensasse que ele foi
mal educado e até grosseiro. Eu comemorei. Isso pra mim se chama progresso. Meu
filho hoje tem quatro anos e só quem tem um filho autista em casa, sabe o que é
conviver com um anjo na terra. Davi é um serzinho iluminado que sabe o nome de todos os
planetas e que o sol é uma estrela. Dialoga com o irmão de 19 anos em inglês, idioma preferido dos dois, e me diz todos os dias, repetidamente, que eu sou muito legal. É um privilégio ser mãe dele.
* Josi Gonçalves é jornalista, casada com Francisco Costa, também jornalista (e dos bons), mãe do Ângelo, um nerd chato pra burro, e do pequeno Davi - que veio ao mundo para a mãe exercitar a arte da paciência. Josi também é filha, da Pauta.